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O frango brasileiro e a hipocrisia européia

<p>Confira artigo publicado no jornal Valor Econômico, feito por Ricardo Gonçalves, presidente da ABEF.</p>

Redação AI (23/08/06)- O Brasil é responsável por 40% do comércio internacional de carne de frango, graças à abundante disponibilidade de soja, milho, água e sol, combinada com tecnologia e empreendedorismo de produtores e exportadores, e apesar da infra-estrutura das estradas e portos, crédito escasso, juros exorbitantes e serviço sanitário público, que deixam muito a desejar. Além dos obstáculos domésticos, o perigo da gripe aviária que atingiu a Ásia e a Europa vem afetando duramente o consumo mundial e, por conseqüência, o desempenho do maior exportador.

Mas isso não é tudo. Desde 2003, os produtores e exportadores de carne de frango brasileiros deparam-se com dois outros adversários pesos-pesados. O primeiro vem de fora: o conhecido e poderoso protecionismo agrícola europeu. O segundo vem de dentro: a falta de importância estratégica que os negociadores brasileiros dão à carne de frango nas negociações internacionais. O setor avícola brasileiro exportou US$ 3,5 bilhões em 2005, cerca de 2,8 milhões de toneladas. Em ordem de importância na pauta de exportações do Brasil, a carne de aves fica abaixo apenas do complexo soja, do ferro e aço, do petróleo cru e dos veículos automotores. Está presente em 146 países.

O setor representa cerca de 1,5% do PIB brasileiro e emprega 4 milhões de pessoas. São milhões de produtores e centenas de empresas produtoras e exportadoras, que contribuem para colocar o Brasil no mapa da economia mundial com marcas e produtos de qualidade.
Ao lado do Japão, da Rússia e de alguns países do Oriente Médio, os europeus são um dos principais clientes da carne de frango brasileira. A União Européia posiciona-se como quarto maior produtor mundial, atrás dos Estados Unidos, China e Brasil e, graças aos seus anacrônicos subsídios à exportação, como 3 maior exportador. Ela também importa cerca de 5% do que consome. O Brasil detém a maior parte deste mercado importador, enviando à UE cerca de 350 mil toneladas de carne de aves por ano desde 2000.

Mas quais são as condições em que o Brasil exporta carne de aves? Como tem uma cota de livre acesso de apenas 26,4 mil toneladas ao ano, para entrar na UE, o país é obrigado a pagar uma tarifa fixa de importação de 1.024 euros por tonelada de carne in natura mais uma tarifa adicional de 450 euros por tonelada de “salvaguarda especial”, uma herança maldita da Rodada Uruguai que representa o incrível montante de cerca de 100% do valor do produto. A salvaguarda especial do frango é uma tarifa adicional aplicada de forma automática para assegurar que o preço doméstico dos cortes desossados de frango na UE jamais possa cair abaixo de ? 3.335 por tonelada, mais que o dobro do preço mundial. Vale lembrar que outros países desenvolvidos, como Japão e EUA, também reservam o direito de aplicar estas salvaguardas na Rodada Uruguai sendo que Índia, China, Indonésia e outros estão brigando na Rodada de Doha para modificar e estender estes mecanismos discricionários a todos os países em desenvolvimento.

Em 2001, importadores europeus vieram ao Brasil buscar cortes de frango salgados para processamento industrial, que na ocasião podiam ingressar no mercado europeu com tarifas mais baixas. Em 2003, a UE nos deu uma “rasteira” com a reclassificação do produto, que passou a ser gravado com as mesmas tarifas do produto sem sal. Entramos com um contencioso na OMC e, depois de mais de três anos sem poder exportar peito salgado para a Europa, ganhamos o litígio no painel e no Órgão de Apelação da OMC. Pudemos assim, desde junho passado, voltar a exportar o produto. Porém, no mesmo mês, os europeus nos dão uma segunda “rasteira” com uma nova arbitrariedade: o anúncio da aplicação do chamado artigo XXVIII do antigo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT 1947), que faculta aos membros do sistema mundial de comércio a possibilidade de reconsolidação de qualquer tarifa aduaneira, desde que seja conferida uma compensação ao(s) país(es) afetado(s). Desta vez, as vítimas são as classificações de frangos industrializados, que também podiam ingressar na Europa com tarifas mais baixas, e que agora estarão limitadas a cotas de importação. Estas irão impossibilitar qualquer expansão futura de nossas exportações.

A decisão européia vai na direção oposta a tudo que se pode imaginar em matéria de comércio equilibrado. O caso do frango é um exemplo prático do discurso liberalizante e da ação protecionista européia na sua forma mais letal. A decisão irá dificultar o avanço das ofertas brasileiras em Doha e das negociações birregionais entre a União Européia e o Mercosul, já que a carne de frango tem ocupado lugar central na agenda européia das duas negociações. Os negociadores brasileiros deveriam encarar este fato como um divisor de águas para a atuação da política comercial brasileira. O assunto já ultrapassou os limites aceitáveis. A aplicação do artigo XXVIII traz consigo a intenção de literalmente bloquear qualquer expansão futura das exportações brasileiras. O bloco europeu não tem economizado esforços para criar novas restrições sanitárias às carnes in natura e agora abre uma frente para conter os produtos de maior valor agregado exportados pelo Brasil, numa reedição do padrão de comércio dos tempos coloniais.

O volume exportado de carne processada está longe de ameaçar o produtor e o processador europeu. No entanto, ele não é suficiente para barrar o ímpeto protecionista do bloco, nem mesmo sabendo que o consumidor europeu paga o dobro do preço pelo frango que consome em relação ao mercado internacional. Restará ao Brasil a opção de negociar cotas compensatórias que parcialmente evitem que a Europa alcance o objetivo de fechar o seu mercado doméstico para importações.

O momento é de definição. Os negociadores brasileiros deveriam endurecer as nossas posições, deixando claro para os europeus que, se eles insistirem nesta linha de ação, nenhuma negociação poderá ser concluída a contento, seja ela multilateral ou birregional.